sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A ampulheta



"Nascer, morrer, renascer ainda, progredir sempre, tal é a Lei."
Allan Kardec

. Estar trabalhando (leia-se estagiando) em um hospital é uma experiência muito valiosa, ainda mais para quem deseja seguir nessa área. É absurdamente cansativa a rotina que assumo nesses dias, piores quando estão chuvosos provocando um trânsito mais absurdo ainda. Porém, não consigo negar a apariçao de uma felicidade atípica com essa experiência, que tem se mostrado a cada dia mais importante na minha vida, tanto acadêmica-profissional como humana.

. O dia-a-dia de um local como o HC I (Hospital do Câncer) que fica localizado na Praça da Cruz Vermelha é algo grandioso. E olha que comento apenas por minha visão. Aposto que relatos diversos diriam o mesmo. O problema é: em que sentido estou empregando a palavra 'grandioso'?

. Eu uso o grandioso no que digo no mesmo sentido que usaria dizendo: "A vida é grandiosa". Grandiosa, por quê? Por suas múltiplas facetas, infitinas possibilidades, acontecimentos inconstantes, aspirações efêmeras, batimentos cardíacos desconcertantes. E a vida é isso... e muito mais. E ela nos proporciona diversos momentos. Bons e ruins. E ontem, na grandiosa vida de um hospital, eu caí. Saí do corpo por um momento, pra me levar em um refúgio de pensamentos, que me desse alguma resposta, que me tirasse aquela angústia provocada.

. Vou explicar. A chefe do departamento que eu estou(hematologia), chamou-me e chamou um amigo que está estagiando comigo para olhar uma lâmina de um paciente, para observarmos as células brancas presentes (espero que não tenham faltado a essa aula de biologia). Quando olhei, enxerguei um alto número de blastos leucêmicos, configurando que naquela lâmina de um indíviduo que estava vendo, um paciente de leucemia. Até aí, "tudo bem". Já tinha visto lâminas desse tipo, o que me jogou pra fora da órbita, foi o seguinte. Aquele paciente não estava mais no hospital. Ela (era uma mulher) estava em casa. O médico tinha dado "alta" pra ele. Pois não tinha mais o que fazer. Acabou. Não dava pra curar a leucemia daquela pessoa. "Volte para casa, minha filha, você irá morrer..."

. Eu não conseguia entender. À partir daquele momento, eu já não era mais o garoto sorridente que fazia piada com tudo no setor. Eu fiquei perplexo. O fim. Assim. Eu não sei o nome dela. Não sei onde mora. De onde veio. Mas sei para onde vai e torço que seja para um lugar melhor. Talvez ela tenha dois meses ainda. Duas semanas. Dois dias. Duas horas. Dois segundos... acabou. Talvez ela tenha morrido hoje. Quem sabe? E agora? Como deve ser? E viver com um prazo à expirar? Isso é vida?

. É fato primordial que a cada segundo que se passa, estamos nos aproximamos de nosso momento final. Mas a nossa concepção de vida é futurista. É difícil colocarmos em pauta a filosofia Carpe Diem e aproveitar o máximo de cada dia como se fosse o último, pois no fundo, algo em nós diz que aquele não é o último. Mas poderia ser, não pode? Quem sabe? Em nosso novo mundo, até respirar é perigoso. Saímos de casa sem saber se vamos voltar. Mas no fundo, achamos que vamos e tudo continuará bem. Pois domingo que vem tem festa de fulana e eu preciso arranjar uma roupa legal pra ir. Mas ninguém nunca joga a opção de morrer até lá. E vive do mesmo modo "normal", pois é "normal" pensar que o sentido da vida é viver, crescer, envelhecer e morrer. Mas o mundo produz rupturas. A vida e o destino produzem cortes nessa ordem lógica, que podem acontecer a qualquer instante. E ela? Será que ainda está viva? O tempo pra ela nunca foi tão precioso. O que ela deve estar fazendo? Será que tem filhos? Eles irão chorar. Ela irá chorar. Todos iremos um dia, quando um ente querido partir e quando nós partirmos.

. Me desculpem, mas esse não é mais um texto que futilmente questiona: O que você faria se morresse amanha?

. Esse é um texto que questiona: O que você NÃO fará caso morra amanhã? Entende a diferença. O que perderemos se a foice do vazio cortar nossa linha de vida? Nossos planos futuros serão todos perdidos. Não iremos na festa da fulana. Não receberemos nosso diploma Não teremos filhos. Não diremos: "Eu aceito". E eu não continuarei a escrever e você, provavelmente ler...

. A ampulheta da vida está virada. Os grãos estão caindo. Eles não são infinitos. Porém, não se esqueça. A qualquer momento a ampulheta pode ser quebrada.

Dedico esse texto à uma desconhecida que pode nunca vir a saber, mas marcará minha vida para todo o sempre. Obrigado.

Música da Semana - The End (The Doors / The Beatles)
Filme da Semana - À espera de um milagre (Drama)
Frase da Semana - "Você não pode escolher como vai morrer ou quando, você só pode decidir como vai viver agora". (Joan Baez)
Imagem - Uma ampulheta.

11 comentários:

Nick. disse...

Cara, a vida-e-morte é um assunto complexo.
Muitos hedonístas têm o argumento do Carpe Diem para viver sua filosofia.

Acredito, eu, hoje em dia, que uma pessoa deve viver uma vida de transcendência. Deve melhorar, sempre.
É o que importa e é o que levamos para o túmulo.

Independente de um Deus, da festa de Fulaninha, do passeio de domingo. Não importa o que vc fez e, sim, o que vc aprendeu com isso, o que tua vida mudou em vc.
;D

COMPRE UM DIÁRIO, MODAFOCA!

-Tri disse...

Ganhará dois comentários meus, um simplesmente por ser o melhor texto que li no cenário atual.

-Tri disse...

O outro, é para dizer, use a vida, viva em favor de viver. Aproveite cada segundo, ame cada pessoa; chore, ria; chore sozinho, chore acompanhado; ria de si mesmo, ria dos outros, ria com os outros. Aprenda...Tome um porre, descubra a ressaca de Segunda-feira. Não tome mais um porre, aprenda. Escolha, ganhe e perca. A vida é bela, vá a extremos, aprenda tudo, para ensinar sem hipocrisia. Adorei.

Unknown disse...

Cara, ver a vida dessa forma é tão perigoso...
Saber que existe a possibilidade do seu plano mais fútil, pro fim do dia, não vir a existir. Pode não ter tempo pra se despedir de ninguém, eles podem nunca ficar sabendo que você se foi, pelo menos, nunca ter certeza do que aconteceu.

Como viver sem nada pra se apegar, sem certeza que daqui a três segundos eu vou estar escrevendo esse mesmo texto?


Do mesmo jeito, é algo estranhamente... reconfortante. É tudo tão efêmero que você passa a dar mais valor ao que está acontecendo AGORA. A rua coberta com pétalas, o cheiro da Dama-da-noite, Luzes da cidade a noite, o 'sabor' da água...

Sério, PUTA texto, Maravilhosa mensagem.


FODA.

Ana disse...

Sou alguém a favor da verbalização de pensamentos; mas esse meu comentário será bem mais desprovido deles do que os outros.
Porque você me tira as palavras.

O essencial, contudo, é isso. Saiba que as suas palavras, frases, textos, afetam vidas. Bem como vidas afetam suas palavras.

Assim sendo, não há mesmo muito a dizer. Realmente adorei.

Lays. disse...

Acho que normalmente não pensamos no amanhã por que nos acostumamos com a idéia de que certas coisas nunca acontecem com a gente. Essa idpeia é quebrada quando alguém proximo sofre alguma coisa ruim. Já passei por essa situação, só que a médica não quis dizer a minha amiga que ela só tinha o prazo da radioterapia de vida e nos deixou criar esperanças. Mas para morrer, basta estar vivo? Não é o que dizem? As vezes isso me da medo e as vezes não. A morte é natural, o dificil é aceitar isso. Bela postagem.

Marcelo Faria disse...

A morte é tão simples e tão complexa; Tão temida e tão esperada; Por vezes incompreendida, em geral desconhecida. Não temos certeza de que vamos nascer. Apenas nascemos, e estamos aqui. Quanto a morte, temos certeza de que um dia ela chegará. Mais cedo ou mais tarde. Um dia, quiçá, andaremos lado a lado com ela. Uns aprendem a ser amigos da morte. Outros, tão amigos, que preferem ser levados antes do tempo. Será que alguém aqui já parou pra pensar? Se tantos seres humanos escolhem morrer... Essa "tal morte" é realmente maléfica? Infelizmente, terei que esperar pra descobrir. Sou um poeta, não um cientista!

No mais, belo texto, irmão Gerson. Como sempre!

Um abraço!

Judie disse...

bom... quase chorei.
é... o que eu não faria? tudo que já não condiz com meus princípios. o que eu faria? viveria minha vidinha, escolheria aquele vestido bonito e iria na festa... ^^

não encaro tanto a morte como algo intenso e negativo, mesmo que assim soe. é o fim de um ciclo... certamente sinto pesar, mas nada que consuma. o que a moça fez, faria ou fará, não sei... mas espero que ela tenha a sensação de missão cumprida sentida.

amei o texto, meu querido primo... muito!

Beijos

sagadonamorado disse...

talvez ela só sinta alívio. talvez não tenha pelo que chorar. talvez não tenha quem chorar por ela. nem sempre a morte é ruim. morte é uma necessidade.

Lauro Rocha disse...

A morte é o fim de um ciclo. Só dá para sentir quando você faz parte dele.

Eu não tenho medo de morrer. Tenho medo de não poder fazer tudo que penso e/ou acredito. Algo como tentar ser melhor [mesmo com a loucura do cotidiano tentando nos fazer mais egoístas e ignorantes].

Eu falei que ia responder e estou aqui cumprindo. Mesmo que tarde.

Saudações Tricolores, brou!

Judie disse...

ninguém mais posta? :(